sexta-feira, 10 de junho de 2011

Crônica de uma morte esperada

*Marcus Vinícius Freitas

Crédito: Divulgação
7h30. Ainda sinto o sangue correndo pelas veias. O gosto agridoce na boca é efeito colateral dos inúmeros remédios engolidos há dias. Ao redor predomina a cor branca. Estou em um hospício? Não, imbecil, você está em um hospital público, mais especificamente em uma maca num corredor lotado de pessoas chorando, sussurros de dor, milhares de histórias sangrando e agonizando lentamente. Nunca estive no exército, mas o que vejo diante meus olhos parece uma cena saída de uma guerra. Vá lá, um hospital de trincheira não deve ser tão assustador assim. Faltou dinheiro para arrumar um leito, então preferi alternar entre meu lar e as constantes vindas a este lugar agradável. Fui piorando e não tive alternativa, tive que ficar na emergência.

Um câncer de pulmão no 4º estágio de crescimento foi diagnosticado há três meses, resultado da ingestão de nicotina por quatro décadas. Há 13 dias, 11 horas e alguns minutos descobri que ele entrou em processo de metástase, isto é, se espalhou para o resto do corpo. Achei que um pouco de tosse acompanhada de sangue fosse normal para um fumante convicto. A coisa ficou preta quando vieram os desmaios. O primeiro foi no volante, dando um susto em minha mulher e nos demais motoristas que trafegavam por perto. A dificuldade em respirar aumentava cada vez mais, o desconforto ao inalar uma quantidade enorme de ar era exaustivo. Um ser humano pode ficar sem ver, ouvir ou falar, mas a sensação de vazio dentro do peito deixa qualquer um instantaneamente pensando na morte. Vieram os exames e uma tonelada de tensão até o momento do diagnóstico definitivo: sua vida está com os dias contados.

11h52. Nessa hora já estaria sentado com garfo e faca na mão devorando um prato de comida, mas nestas condições só consigo pensar em aliviar a dor. Comer dá enjoo e ânsia de vômito, deve ser pela debilitação ou por causa dos malditos remédios. Daria um ou dois órgãos para ter novamente o prazer de uma refeição simples, normal. Não queria um banquete ou dois caminhões de comida, apenas o rotineiro.

Crédito: Divulgação
 14h07. Um homem baleado entra na emergência e causa um tumulto. Reagiu a um assalto e levou no corpo três balas de brinde: uma no tórax, outra no braço e a última na perna. Não sei se o fulano irá sobreviver, pelo olhar dos médicos parece que não, o que me dá um pouco de inveja. Tomar um tiro na cara deve ser um modo mais tranquilo de morrer do que ter um câncer se engalfinhando lentamente nas suas entranhas. A inveja dura até o momento que a enfermeira para de mexer no fulano e o médico marca o horário de óbito. Não existe nada épico, legal ou glamoroso na morte. Somos apenas um saco de carne e osso que para de funcionar em um momento, nada mais do que isso.

Não consigo mais olhar o relógio na parede, minha visão fica embaçada. Sinto minha respiração enfraquecer-se, o sangue pulsar lentamente. Demora algum tempo até alguém perceber que estou piorando, mas não é culpa deles. Faltam médicos, faltam enfermeiras, faltam equipamentos, remédios, esparadrapos, quartos e muito mais. A única coisa que não falta são pacientes, que entopem os opacos corredores com o odor da morte. O sistema de saúde é precário e não consegue dar conta de todos. Apesar de que seringas de ouro e todos os doutores do universo não conseguiriam me tirar desta.

O relógio continua correndo, mas não conto o tempo para sair daqui. Perco a noção de espaço-tempo, foco apenas na quase nula respiração e nas milhares de facas que apertam meu peito, ou pelo menos é assim que sinto os pulmões doerem. Máquinas apitando, correria ao meu redor e de repente tudo fica silencioso.
Alguns vão chorar por mim, meus parentes ficarão de luto por algum tempo, mas no cenário geral irei virar estatística. Todas as histórias, os dias vividos, alegrias e tristezas serão apagadas do mundo. Tudo será resumido a meio centímetro numa tabela de óbitos, nada mais que isto. Apenas mais um caso entre os milhares que acontecem todos os dias nos hospitais públicos.

...

O câncer de pulmão é um dos tipos de câncer que mais mata no mundo. Estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta que aproximadamente 7,6 milhões de pessoas morrem todos os anos em decorrência da doença. No Brasil, a taxa de mortalidade do câncer de pulmão é de 18,37 a cada 100 mil homens e 9,82 a cada 100 mil mulheres, conforme dados do Instituto Nacional do Câncer (INCA). O cigarro é a principal causa da doença.


Links

http://www.youtube.com/watch?v=h0ATFtsrSoo

http://www.youtube.com/watch?v=waAz1iWD-UY


*Aluno do VII nível de Jornalimso Online






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