Andersson Catani, Acadêmico de Jornalismo, VII Nível
Atacava a geladeira, como de costume, às duas e meia da matina. Sempre escolho horários óbvios para os meus lanches. A casa toda estava às escuras, devido ao meu hábito de dormir de luz apagada. A minha sombra sambava nas paredes, produzida pela luz da geladeira. Entre um rolinho de presunto e queijo e um gole de leite condensado, ouvi passos na sala. Minha casa é daquelas antigas, nas quais cozinha e sala são dois cômodos separados. Parei por um instante, checando se o barulho continuava. Como não ouvi bulhufas, deduzi que o ruído fosse produto da minha imaginação fértil - ou da mistura de muitos ingredientes num único sanduíche. Só caí na real quando os passos se transformaram em roçar de cortinas. Alguém – ou alguma coisa – abriu a porta da sacada.
Negaceando, fui até a sala conferir, com um pedaço de paio na mão esquerda – sou canhoto – que seria prontamente atirado na cabeça do intruso, se necessário. Foi aí que o vi, sentado em meu sofá. Um espectro. Um fantasma. Não me pareceu estranho, a princípio. Obviamente não era desta época e nem deste país. Segurava um crânio humano na mão esquerda – devia ser canhoto também. Há de ser ressaltado que, apesar do evidente congelamento do sangue em minhas veias, consegui iniciar um papo com o espectro, que era semitransparente, como é comum entre os espectros:
- Hamlet?
- Não, William Shakespeare. Mas em minhas materializações prefiro aparecer como um de meus personagens, que são mais conhecidos.
Sempre temi por este dia. Não o dia em que me defrontaria com a existência do sobrenatural, mas o dia em que a demência me alcançaria, pois estava claro que aquilo era uma alucinação. Shakespeare, no meu sofá, e falando português? Ninguém poderia exemplificar com mais clareza a falta de lucidez.
- Estou aqui em nome de todos os escritores do passado, Andy.
- Mas logo você, Will – éramos íntimos o suficiente para nos tratarmos por apelidos.
- Fui escolhido pela minha fleuma. Você não gostaria de conversar com Olavo Bilac ou Oscar Wilde.
- E qual o motivo da visita?
- Dissuadi-lo da idéia de escrever um livro de crônicas.
- Nunca.
- Visite a feira do livro de Passo Fundo. Leia algo escrito por profissionais, você se convencerá que publicar um livro com suas idéias grosseiras seria uma vergonha para os escritores do passado.
- Mas pelo menos você as leu, se sabe que são grosseiras. E, se bem me lembro, Will, nem todas as suas obras foram aclamadas...
- Ousa se comparar a mim? Eu sou William...
E o fantasma continuava falando. Não acreditava naquilo que estava acontecendo. Ou a Feira do Livro de Passo Fundo estava investindo pesado em divulgação, ou aquele paio estava definitivamente estragado. Will continuava tagarelando:
- O aviso está dado. Da próxima vez, Agatha Christie virá.
- Mas você deve ter encontrado algo de bom nas minhas crônicas. Uma só! Uma sacada, uma piada bem bolada! Nada?
Mas William Shakespeare não respondeu. Já estava sumindo, com o olhar triste e o polegar apontado para baixo, em sinal de negação.
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